Os Princípios Islâmicos Relativos ao Lícito e ao Ilícito – 1

1. A Base das Coisas é a Permissibilidade

2. O Tornar Lícito e o Proibir São Prerrogativas Exclusivas de Allah

3. Proibir o Lícito e Permitir o Ilícito é o Mesmo que Cometer Politeísmo

4. A Proibição de Certas Coisas se Deve a Serem Elas Impuras e Prejudiciais

5. O que é Lícito é Suficiente, enquanto que o que Ilícito é Supérfluo

6. Aquilo que Conduz ao Ilícito é também Ilícito

7. Considerar o Ilícito como sendo Lícito é Proibido

8. As Boas Intenções não Justificam a Prática do Ilícito

9. Aquilo que for Duvidoso deve ser Evitado

10. O Ilícito é Proibido a Todos por Igual

11. A Necessidade Estabelece Exceções

1. A Base das Coisas é a Permissibilidade

O primeiro princípio estabelecido pelo Islam é o de que as coisas que Allah criou e as vantagens advindas delas são essencialmente para uso dos homens, e são, portanto, permissíveis. Nada é ilícito exceto aquilo que é proibido por uma legislação firme e explícita comunicada pelo Grande Legislador, Allah. Se a legislação não é autêntica nem firme, como no caso de uma tradição fraca, ou se ela não é explícita na asserção da proibição, é aplicável o princípio original da permissibilidade.

Os eruditos do Islam derivaram esse princípio da utilidade e permissibilidade natural das coisas dos versículos claros do Alcorão. Por exemplo, Allah diz:

“Ele é Quem criou para vós tudo o que há na terra (…)” Surat Al-Baqarah, 2:29

“E submete-vos o que há nos céus e o que há na terra: tudo é dEle.” Surat Al-Jathiyah, 45:13

“Não vistes que Allah vos submeteu o que há nos céus e o que há na terra, e vos colmou de Suas graças, aparentes e latentes?” Surat Luqman, 31:20

Seria possível que Allah criasse todas essas coisas, as entregasse ao controle dos homens e as submetesse para o benefício destes, e então lhes proibisse o seu uso? Como poderia ser tal coisa se Ele criou tudo isso para uso e benefício do homem? Na verdade, Ele só proibiu algumas poucas coisas e por razões específicas, a sabedoria das quais será discutida mais adiante.

No Islam, a esfera das coisas proibidas é pequena, enquanto que a das coisas permitidas é extremamente ampla. Há tão somente certo e pequeno número de textos claros e explícitos sobre as proibições, enquanto que aquilo que não está mencionado em uma legislação como sendo lícito ou ilícito se insere no princípio geral da permissibilidade das coisas e no domínio das mercês de Allah. Neste sentido, o Profeta s.a.w. disse:

“Aquilo que Allah tornou lícito em Seu Livro é halal (lícito) e o que Ele proibiu é haram (ilícito), e aquilo a respeito do que Ele nada diz, é permitido como sendo de Sua mercê. Portanto, aceitai as mercês de Allah, pois Allah jamais esquece”. Então ele recitou: “E teu Senhor nad esquece”
Suratu Maryam, 19:64

Salman al-Fársi relatou que quando o Mensageiro de Allah s.a.w. foi perguntado a respeito da gordura animal, queijo e peles, ele respondeu:

“Halal (lícito) é aquilo que Allah tornou lícito em Seu Livro e haram (ilícito) é tudo aquilo que Ele proibiu, e tudo sobre o que Ele nada disse Ele permitiu como uma mercê para vós”.

Desse modo, ao invés de dar respostas específicas ao que havia sido perguntado, o Profeta s.a.w. referiu-se ao critério geral para a determinação do lícito e do ilícito. Concomitantemente, é suficiente para nós sabermos o que Allah tornou ilícito, uma vez que o que não estiver incluído aí é puro e permissível. O Profeta s.a.w. também disse:

“Allah vos impôs certas obrigações, não deveis negligenciá-las; Ele definiu determinados limites, os quais não deveis transgredir; Ele proibiu certas coisas, portanto, não as fazeis; e Ele nada disse a respeito de outras coisas por misericórdia de vós e não por esquecimento. Portanto, não deveis fazer perguntas a respeito delas.”

Eu gostaria aqui de destacar que o princípio da permissibilidade natural não se circunscreve somente às coisas e objetos, mas também inclui os atos e o comportamento humano, não relacionados ao ato de culto, que podem ser classificados como hábitos de vida ou afazeres do dia-a-dia. Neste sentido também, o princípio é de que todos são permitidos sem restrição, exceto um pequeno número de coisas que são definitivamente proibidas pelo Legislador, Allah, Que diz:

“(…) Ele vos aclarou o que vos é proibido (…)” Surat Al-An’am, 6:19, incluindo tanto objetos como ações.

O caso é diferente, entretanto, quando se trata de atos relacionados ao culto. Estes são atos puramente religiosos que só podem ser praticados e deduzidos daquilo que Allah revela. A esse respeito temos uma tradição autêntica:

“Qualquer inovação neste assunto (culto) que dele não faz parte, deve ser rejeitada.”

Qualquer um que inventa ou dá origem a uma forma de culto por sua própria conta se desvia do caminho e deve ser repudiado, pois somente o Legislador, Ele próprio, tem o direito de originar atos de culto, por meio dos quais os seres humanos podem procurar a Sua proximidade. Os hábitos de vida e os assunto do dia-a-dia, no entanto, não se originaram do Legislador: eles tiveram origem e foram praticados pelos próprios seres humanos. Assim, o Legislador só intervém para retificar, moderar ou aperfeiçoar estes, e ocasionalmente identificar algumas práticas que são prejudiciais ou que possam dar margem a conflitos.

O Sheikhul Islam, Ibn Taimiyah, afirma:

Os ditos e os atos do povo são de duas espécies: atos de culto que estabelecem sua religião, e as práticas costumeiras que são necessárias à vida do dia-a-dia. Dos princípios da Shari’ah ficamos sabendo que os atos de culto são aqueles que foram prescritos por Allah ou aprovados por Ele: nada há para se dizer quanto a isso exceto o que consta da Shari’ah. Entretanto, no que respeita as atividades mundanas dos povos, elas são necessárias para vida diária. Aqui o princípio é o de liberdade de ação; nada pode ser restrito neste sentido exceto o que Allah tenha restrito. Esse é o caso porque determinar e proibir estão nas mãos de Allah. No que respeita o culto há um mandamento d’Ele sobre isso. Assim sendo, quando este requer um mandamento (de Allah) para determinar algo, como podemos dizer que esteja restrito sem o mandamento d’Ele?

É por isso que Ahmad Ibn Hambal e outros juristas, que baseiam seus pareceres nas Tradições, dizem: em relação aos atos de culto, não pode ser decidido sobre isso além daquilo que Allah determinou. Agir de outro modo é incorrer no risco de ser incluído no significado do versículo:

“Ou têm eles parceiros que legislaram, para eles, o que, da religião, Allah não permitiu?”
Surat Ash-Shura, 42:21

Mas no que tange os hábitos de vida, o princípio é o d liberdade, porque nada pode ser restrito neste sentido exceto aquilo que Allah tenha proibido. Neste campo, agir de outro modo é ser incluído no significado do dito d’Ele:

“Dize: Vistes o que Allah criou para vós, de sustento, e disso fazeis algo ilícito e lícito?’ Dize: ‘Allah vo-lo permitiu, ou forjais mentiras acerca de Allah?’” Surat Yunus, 10:59

Esse é um princípio valoroso e beneficente, com base no qual podemos dizer que comprar, vender, alugar, presentear, e outros tais fazeres, são atividades necessárias para as pessoas, como o são as de comer, beber e usar roupas. Se a Shari’ah diz algum coisa a respeito desses assuntos mundanos, é para ensinar o bom comportamento. De acordo com isso, ela proibiu tudo que possa levar a conflitos, tornando obrigatório quilo que seja essencial, desaprovou tudo que é frívolo e aprovou tudo que é benéfico. Tudo isto foi feito de acordo com as características próprias às atividades envolvidas, suas magnitudes e propriedades.

“Uma vez que esta é a posição da Shari’ah, as pessoas podem comprar, vender e alugar livremente, como lhes aprouver, tanto quanto estão livres para comer e beber aquilo de que gostem desde que não seja ilícito. Apesar de que é possível algumas de tais coisas não terem aprovação, eles estão livres disso, uma vez que a Shari’ah não vai tão longe ponto de proibi-las, permanecendo desse modo o princípio original da permissividade”.

Este princípio também é respaldado pelo que é relatado por uma Tradição autêntica pelo Companheiro do Profeta, Jabir bin Abdullah. Disse ele: “Costumávamos praticar o ‘azl (coitus interrupts, ou a retirada antes da ejaculação durante o relacionamento sexual) na época em que o Alcorão estava sendo revelado. Se essa prática tivesse que ser proibida, o Alcorão assim o teria feito.” Ele consequentemente concluiu que, se a revelação divina silenciava a respeito de alguma coisa, esta era permissível para a gente praticá-la livremente. Sem dúvida, os Companheiros do Profeta compreendiam perfeitamente a Shari’ah. Concomitantemente, este valoroso princípio – de que não se pode legislar sobre o culto anão ser por mandamento de Allah, e nenhuma prática pode ser proibida que não tenha sido proibida por Ele – está firmemente enraizado.

Por: Dr. Youssef Al-Karadhawi/ Tradução: Samir El Hayek